sexta-feira, dezembro 16, 2005

Da série: Mesmo quando a gente tem certeza das coisas, elas não são exatamente o que parecem.

(Quase) Tudo sobre ela
Não há mais conforto em rodar de carro horas e horas e horas e mais horas. Nem em fumar e fumar e fumar, principalmente na varanda. Nem há tranqüilidade suficiente para fazer de conta que tudo vai bem, obrigado. Não consigo mais me enganar. Nem sempre foi assim.
Só há uma coisa pior que calor em Porto Alegre: calor fora de época em Porto Alegre. Principalmente para quem não gosta de calor e ainda por cima tem que usar termo e gravata sem gostar de terno e gravata e sem dinheiro para andar de automóvel bacana equipado com o mais ultra dos ar condicionados. Foi um começo de dia assim. Terrível.
Sem café da manhã, como sempre, cheguei ao trabalho onde garanto as contas do mês preparado para mais um dia de marasmo, calor e surpresas desagradáveis - ou não.
Até boa parte da jornada, cumpriu-se o previsível. Gente pedindo coisas impossíveis, reclamando de problemas imaginários, exigindo soluções imediatas para questões insolúveis ou simplesmente recorrendo a mim para que eu executasse de maneira magistral o meu ofício.
A cada telefonema mais chato, vinha-me à mente uma vozinha diabólica dizendo, "ah, você está fazendo o que neste buraco, irmão?! Vá pára casa, vá fazer o que você gosta, chega dessa festa chata com gente esquisita! Não há o que perder!" E o dinheiro?, eu perguntava, imaginariamente a essa vozinha sacana."Ah, dinheiro! Dinheiro a gente arruma de várias maneiras. E precisa de tanto dinheiro pra quê? Para pagar as suas contas ou para amparar os outros?"
Estava entre esses telefonemas chatos, umas articulações medonhas e insalubres e outras bobagens quando uma comadre surgiu no meu celular:
- "Arthur!Voa aqui que o Rafa quer falar contigo. É urgente. Ele está nervoso!"
Nossaaaa, estou tremendo! Era só o que me faltava , eu pensei. Sem a menor pressa, só para irritar o Rafa - um dos meus raros prazeres no hospício onde trabalho - fui indo à sala da chefia. Parei para ouvir de uma puta que eu ficava não sei o que vestindo terno sei lá de quê cor que ela adorava isso e aquilo e blá blá blá. Não há proposta boa o bastante que um mau convite não possa estragar. Também falei com um sujeito que queria meu apoio para fazer algo bom o bastante num movimento comunitário. Ouvi. Ouvi todo mundo, sem pressa, imaginando o Rafa me esperando furioso, cheio de reclamações para fazer e babando pela boca...
Depois de um tempo, cheguei à sala do sujeito capa-preta, uma pessoa absoluta e indescritivelmente desagradável, daqueles caras que fazem o impossível para a gente não gostar dele, e para piorar o ignorante não sabia o que era Marxismo.
- Finalmente! – ele disse. Escutei mas nem vi o sacana. A sua frente havia uma menina que, no começo, achei diferente, positivamente diferente.
- Arthur! Essa aqui é a Laura. Ela talvez vá trabalhar contigo. Agora vocês conversam e , se ela servir, por mim já está contratada!
- Por mim também!, eu disse, mais para livrar a menina da presença infeta daquele chato inigualável do que por contratá-la por necessidade profissional.
Fomos ao fim do corredor, um lugar de viciados em nicotina, fofocas e cochichos.
- Bem!, eu disse, pra começar a conversa sem saber muito bem por onde. Além desse bem, falei umas três ou quatro palavras. O resto foi com ela. Caralho, como fala!, eu ia pensando. Coisa estranha: era o primeiro fenômeno do dia que não me incomodava. Pelo contrário, de um jeito muito especial e inexplicável, aquilo me fazia um bem tremendo, eram cócegas no espírito meio empoeirado.
- E eu também estou escrevendo um romance...
Puta que pariu. Ainda por cima escrevia. A vozinha, aquela vozinha sacana, voltou: "Ih , irmão, acho que você se fodeu!", não, claro que não. Há anos que eu era um racionalista ortodoxo a que nada ameaçava. Ia me assustar com uma menina de ..
- Que idade você tem mesmo?
Ela disse e eu congelei. Não, não. Eu não posso ser essa múmia que se apavora com essa ninfeta que com tão pouca idade sabe tanto, acumula tanto, impressiona tanto. E quanto mais ela falava, pior eu ia ficando. Ou melhor. Gosta de literatura, é inteligentérrima, lindíssima, sensualíssima. " Acho que você se fodeu, irmão", insistia a vozinha do cão. É, maybe! – eu disse.
- Heim? - ela perguntou com aqueles grandes olhos de amêndoas.
- Nada. Estava falando sozinho – expliquei.
- Ah tá. Daí, eu..., e continuou a matraca mil por hora, uma delícia.
Ela se foi depois de longas horas de bate papo faraônico, literato e irracional. Voltei a minha sala. Meu amigo Diego começou a me despejar uma porção de demandas enquanto eu mastigava um cigarro apagado dizendo...sei, sei, aham, até que ele perguntou:
- Arthur, tá tudo bem?
- Claro, ué!
- Tá com uma cara estranha.
- Minha cara é estranha.
(continua)
***

3 comentários:

Anônimo disse...

... baseado em fatos reais, Preeta?

Beijo.
OPN!

Silvio Pilau disse...

Não faz isso!

Coloca o resto aí.

De quem é isso?

Anônimo disse...

Oui, prémière page d'un romance noir francês belle époque.
No blog tem fundo.
Anonimus Cormet